quinta-feira, 20 de março de 2014

A importância dos Sonhos Lúcidos (SL) - Parte 1


Parte 1 - A abordagem tibetana
 
Por razões que ficarão mais claras adiante, interessa-nos em especial a abordagem tibetana acerca dos sonhos – pois foi nessa cultura que floresceu da maneira talvez mais rica, detalhada e profunda o estudo dos sonhos e, em particular dos SL, associado a um rigor na análise que supera a abordagem cientifica atual.
Com efeito, tanto na tradição pré-budista (Bön), quanto nas quatro linhagens do Budismo Tibetano, a prática de SL constitui uma das principais práticas yóguicas a serem conduzidas com vistas ao aumento da lucidez e expansão da consciência até o atingimento do estado búdico (auto-realização): é a chamada prática noturna. E, de fato, o desenvolvimento da capacidade de sonhar lucidamente marca o início da assim chamada yoga dos sonhos, pela qual o praticante poderá superar não apenas dificuldades psicológicas e emocionais comuns (obstáculos primários ao desenvolvimento espiritual), como também é através dela que principia sua prática genuinamente espiritual. Atingido um certo grau de maestria na yoga dos sonhos, o praticante se dedicará, nas práticas noturnas, à yoga do sono, em que o estado do consciência plena se estabelece sem sonhos.
A vantagem da prática noturna é que, durante o sono (diriam os ocidentais, em estados de frequência mental alterada), desativamos muitas das barreiras críticas que nos impedem de acessar instâncias inconscientes:  a mente se torna mais plástica.
Por exemplo, podemos observar, já no estado hipnagógico (o estado entre vigília e sono), que as idéias se associam mais rápida e livremente sem as barreiras da vigília racional-crítica. Todos nós já observamos que, mesmo quando nos julgamos plenamente acordados durante uma madrugada insone, algumas idéias nefastas, obscuras ou trágicas, de um lado, ou insights brilhantes e  “evidentes”, por outro, nos ocorrem com incrível singeleza e velocidade.
Disso advém uma outra idéia fundamental, também derivada da plasticidade, qual seja: a percepção de que aquilo que pensamos automaticamente se materializa diante do foco de atenção, tanto sob forma de imagens, percepções sensoriais e sensações diversas, como de sentimentos, emoções, memórias  e mesmo de outros pensamentos, num encadeamento livre que dá vida a um mundo paralelo, plenamente concreto (co-emergência da realidade).
 
Adormeci. Estava conseguindo ver claramente todos os objetos que costumam adornar o meu estúdio. Minha atenção pousou numa bandeja de porcelana em que mantenho os lápis e canetas e que tem uma deco­ração muito fora do comum (...) De repente pensei: sempre que estou acordado e olho para esta bandeja, está inteira. E se eu a quebrasse no sonho? Como a minha imaginação iria representar a bandeja quebrada? Imediatamente quebrei-a em vários pedaços. Peguei os pedaços e examinei-os atentamente. Observei as arestas afiadas das linhas de ruptura e as trincas dentadas que separaram as figuras da decoração em vários lugares. Nunca havia tido um sonho tão vívido.
 
No tocante aos SL e às práticas noturnas, o princípio consiste em perceber que a mente – seja no sono ou na vigília – é plástica e a realidade, co-emergente. Trata-se de transferir os estados e o aprendizado obtidos durante o sono - com a utilização da plasticidade da mente -  para o estado de vigília, formando o continuum do estado de consciência.  Esse continuum de consciência pode ser descrito de outras formas: aproximação e integração dos dois hemisférios cerebrais; fusão/aproximação do consciente e do inconsciente; feminino e masculino; superação da dualidade sujeito-objeto; superação das limitações espaço-temporais etc. Não nos aprofundaremos aqui sobre isso.
Pelo exposto, fica mais claro que esta abordagem não se refere à interpretação dos sonhos, mas antes à forma como a consciência se estrutura e opera (tanto em sono, como na vigília), com vistas à sua expansão, utilizando para isso a sempre privilegiada instància dos sonhos.

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